Há uma semana lembrei-me que se aproximava o dia da espiga. Não sou crente,
não sou supersticiosa. Se tenho uma religião é o amor aos meus. E foi pela minha
avó que me lembrei do dia.
Pensei com mágoa, com uma raiva não direcionada, mas mal contida, que este
ano não ia comprar ramo nenhum! Que se lixassem esses rituais pagãos que não
têm qualquer sentido ou razão lógica.
Espigas em número ímpar para representar o pão e a fertilidade. Papoilas
rubras a simbolizar o amor. O malmequer “prata e ouro” para as riquezas terrenas.
A oliveira, desejo de paz. O alecrim, para a força. A videira, a alegria. (E haverão tantas variantes quantas as regiões de Portugal, mas esta é a versão que sigo)
No dia de hoje, a minha avó ligar-me-ia. – Hoje é dia de espiga. Eu até gostava de ter um raminho…, mas se calhar já não se veem… E eu diria, como sempre: - Se eu encontrar levo-te um.
E levava. Todos os anos. Às vezes apanhado por mim daqui
e dali até ter o ramo feito, outras vezes correndo as entradas do metro ou floristas
conhecidas e fazendo o ramo depois. Não te contava se tinha sido fácil ou difícil
consegui-lo. Levava-to todos os anos, com o sorriso genuíno de uma criança que
acaba de colher uma flor para a mãe. Tu ficavas feliz. Porque tinhas prazer
nestes pequenos rituais que vinham da tua infância. Eu ficava feliz. Porque me
regozijo com a felicidade daqueles que amo.
A semana passada pensei revoltada que não queria saber das espigas para
nada! Era apenas uma quinta-feira e a tradição é desprovida de sentido
racional. Este ano não podia partilhar com a minha avó e era ela quem fazia a tradição manter-se.
Não faço. Não quero saber! Acabou essa tradição. Finquei pé e decidi riscar do meu calendário a data.
Mas esta noite, acordei a pensar em ti, avózinha. Acordei a pensar que a minha
revolta era contra a ausência do teu telefonema. Que o que me custava era não poder
dar-te em mãos as flores e rirmos juntas das coisas que estavam em falta no ramalhete…
- que hoje as pessoas já nem sabem porque se vai à espiga. E a maior parte nem
sabe o que leva o ramo ou porquê…
No escuro, recordei aquela vez, em que com 15 ou 16 anos, fomos muitos, rapazes e raparigas, apanhar ramos para a serra do Olival e o Samuel, que era um rapaz bem parecido mas com ares de atrevido, me deu uma papoila e um beijo no pescoço…. Sorrio... essas memórias não são minhas, mas da minha avó.
Aliás, na verdade, não é assim! E percebo com carinho, que as memórias da avó são agora minhas. E assim, de mansinho, como um abraço invisível, constato que o ritual da espiga não era dela. Era nosso. Meu e dela. E devia ser mantido. Porque a avó continua aqui. Em mim. Tanto, mas tanto em mim.
Hoje, ao sair do trabalho, passei na florista e comprei os dois ramos da praxe.
Levei um à minha avó. Ia incompleto… Esta gente não sabe fazer ramos, não lhe tinham posto alecrim. Não pudemos rir juntas, mas sorrio por saber o que dirias se pudesses. O meu ramo está na cozinha.
Por cima da porta.
E tem simbolismo. Muito. Mais que os símbolos individuais de cada elemento,
aquele raminho simboliza memórias, amor, família. Sempre a família.
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